Brasília, 23 de março de 2020.
Carta aberta da Rede Nacional Primeira Infância (RNPI) dirigida ao presidente do Conselho
Nacional de Educação
Prezado Senhor Presidente do Conselho Nacional de Educação, Luiz Roberto Liza Curi e demais
conselheiros/as,
Recentemente, tomamos conhecimento de ofício do Conselho Nacional de Educação (CNE),
encaminhado ao Ministério da Educação, propondo alteração no Art. 8º do Decreto 9.057, de
25 de maio de 2017, de modo a possibilitar a oferta de Educação Infantil na modalidade de
ensino a distância em função do agravamento da crise sanitária que avança em nosso país com
a propagação da COVID-19.
Reconhecemos o papel relevante que, historicamente, o CNE assumiu na construção e defesa
da Educação Infantil, expresso de modo consistente e competente nos vários documentos
normativos produzidos ao longo dos anos pelo Conselho, dentre os quais destacamos a
Resolução CNE/CEB n.º 05 de dezembro de 2009, que estabelece as Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação Infantil (DCNEI).
Por meio desta carta aberta, vimos, de modo colaborativo, ponderar que a alteração proposta
não é uma boa medida, tampouco trará o efeito que se pretende, de minimizar os prejuízos
produzidos pelo avanço da COVID-19 ao calendário de creches e pré-escolas, uma vez que a
educação das crianças de até cinco anos e onze meses é de natureza essencialmente
interacional, como reconhecido e afirmado nas normas postas pelo próprio CNE.
Destacamos, a respeito, os seguintes aspectos:
• A medida que está sendo proposta prioriza o número de dias letivos em detrimento
das interações e brincadeiras, eixos estruturantes da Educação Infantil que, quando
devidamente acompanhados por profissionais com formação específica – curso de
pedagogia e habilitados para essa etapa da educação básica – podem criar condições
para a promoção do desenvolvimento infantil, tal como explicitado nas normas
emanadas por esse mesmo Conselho;
• É preciso considerar que este Conselho conferiu atribuições diferenciadas à docência
na Educação Infantil, que ao partilhar com as famílias a educação e os cuidados
destinados às crianças de até cinco anos e onze meses, proporciona a meninos e
meninas interações e brincadeiras por meio de ações mediadoras, que instigam a
criatividade, provocam questões que ampliam a visão da criança, possibilitando formas
de descoberta do mundo social e cultural em seu entorno. Esse processo de mediação
cultural diferencia o brincar e as demais interações vivenciadas pelas crianças no
contexto da instituição de Educação Infantil daquelas realizadas no contexto familiar;
• A Educação Infantil não é pré-requisito para o Ensino Fundamental, tanto que as
normativas deste Conselho regulamentam que a avalição das crianças da Educação
Infantil não pressupõe retenção e nivelação de conteúdos aprendidos. Isso torna
possível flexibilizar a frequência a essa primeira etapa da Educação Básica, de acordo
com o contexto, sem alterar substancialmente o sentido pedagógico da Educação
Infantil presencial;
• A Educação a Distância, de acordo com Art. 80 da LDB, é ofertada por instituições
especialmente credenciadas pela União e, desse modo, a produção, controle e
avaliação de programas – que inexistem para a Educação Infantil – exigem autorização
dos respectivos sistemas de ensino. Somam-se a isso os elevados investimentos
financeiros e tecnológicos requeridos para a Educação a Distância, inacessíveis na
maioria dos municípios;
• A Educação a Distância exige que as famílias disponham de equipamentos apropriados,
o que não é realidade em grande parte delas, especialmente as mais pobres. Desse modo, a proposição de oferta de Educação Infantil na modalidade a distância,
acentuará, ainda mais, as desigualdades sociais na infância e, consequentemente, na
sociedade brasileira, dado que o acesso às tecnologias da informação e comunicação
ainda não foram totalmente democratizados em nosso país;
• Problemas decorrentes do uso das telas na educação das crianças nos primeiros anos
de vida têm sido apontados em vários documentos da Sociedade Brasileira de
Pediatria, destacando-se entre eles, a dependência digital;
• O currículo da Educação Infantil, tal como definido nas DCNEI, se pauta na experiência
das crianças diante de proposições que integram as diferentes linguagens, portanto,
não encontra-se estruturado por conteúdos, mas a partir de situações educativas
organizadas pelas professoras com base na observação e na escuta de situações
vividas por meninos e meninas no cotidiano, o que não se aplica à educação a
distância e nem irá ocorrer no atendimento que os pais e familiares prestam aos seus
filhos em casa;
• A linguagem primordial da criança é a brincadeira em situações do seu cotidiano
vivido, seja em casa ou na escola. As crianças se expressam pelo corpo, pela dança,
pela música, pelo jogo de faz de conta, pela narração de histórias lidas ou vividas, pelo
desenho, sem imposição de um “desempenho acadêmico”;
• É importante considerar, também, que em um momento como este, de isolamento
social, as crianças tenham convívio e interações com adultos diferentes daqueles que
compõem normalmente o contexto familiar. Portanto, sobrecarregar meninos e
meninas de zero a cinco anos e onze meses com atividades escolarizadas em casa,
poderá aumentar o estresse de crianças e adultos. É preciso ponderar que esse tempo
de reclusão deverá se configurar como momento rico de interações livres e criativas
entre crianças, seus pais e familiares, posto que não são as aprendizagens "escolares”
que devam predominar neste isolamento social, mas as relações ternas e solidárias.
Cientes da preocupação do CNE em orientar os estados e municípios em decisões que não
firam e garantam os direitos das crianças em aprender e viver a infância plenamente, assim
como a valorização do ambiente escolar, mesmo em situações como estas, respeitosamente,
esperamos que o Conselho reavalie sua iniciativa de incluir a modalidade a distância na etapa
da Educação Infantil.
Miriam Izabel Albernaz Cordeiro
Coordenadora da Secretaria Executiva da RNPI
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